Ainda que visto por muita gente como uma forma de arte menor, acho que poucas mídias tem capacidade de formação de caráter que as histórias em quadrinhos conseguem ter.
Pois o carimbo pejorativo de “coisa de criança”acaba fazendo com que ela chegue nas mão destas, e entre um quebra-pau de caras com colante e outro, passam alguns valores que irão lhe acompanhar pelo resto da vida.
Ou salvar uma vida como é o caso de Dean Trippe e sua mini-autobiografia em quadrinhos “Something Terrible”
Na busca de notícias para esta pocilga, me deparei com o review da webcomic de Trippe nesse artigo no Robot 6 que a considerou uma das melhores histórias do ano. Ela realmente é, mas não foi esse só esse elogio que me levou a comprá-la. O que me chamou a atenção foi a coragem do autor em expor o terrível trauma por qual passou na infância e como os quadrinhos o ajudaram a superá-lo.
Ainda garoto e no mesmo ano que seu pai biológico o abandonou, Dean foi violentado sexualmente por três dias por um perturbado adolescente, que ameaçava matar a família dele caso ele contasse para alguém. Felizmente a mãe dele percebeu o ocorrido e eles conseguiram colocar esse degenerado atrás das grades.
Em poucos quadros o autor mostra de maneira extremamente sutil a violência sofrida, e isso torna a leitura ainda mais impactante , pois traz um pouco a percepção infantil desse “coisa terrível” que aconteceu a Dean e a dificuldade que ele enfrentou, ainda criança, em seguir em frente. Por sorte Dean conseguiu um aliado de peso para isso, que mesmo não existindo serviu como uma fonte extra de força interior
Ao assistir o filme do Batman do Tim Burton, especificamente a cena em que é mostrado em flashback o assassinato dos pais do menino Bruce Wayne, o autor sentiu uma conexão com seu trauma e se deparou com a idéia que, segundo ele, “é bem simples e está presente em qualquer boa história de super-heróis”: você é o que decidir ser e que não importa o que aconteceu com você, mas sim o que você vai fazer a respeito disso.
Isso o fez comprar sua primeira revista em quadrinhos do Batman e o levou para um mundo em que pelo menos durante o período de tempo em que ele lia/assistia algo ele abandonava o pesado fardo que era obrigado a carregar enquanto também o ajudava a superar, na medida do possível, seu trauma.
Mas ao se deparar em uma séries de tv com o conceito de ciclo de abusos (que dizia que a criança a vítima de violência tinha grande probabilidade se se tornar um agressor quando adulto) passou a atormentá-lo. E a maneira que ele escolher de exorcizar seu temor foi, em um exercício de meta-linguagem, rescrever sua história com o Batman lhe salvando de “uma coisa terrível”que iria lhe acontecer e lhe apresentando um lugar em que ele sempre estaria a salvo.
E essa história é “Something Terrible”, uma das coisas mais tocantes que já li! Apesar não ter sofrido algo tão trágico quanto Dean, os quadrinhos também foram (e ainda são) um lugar de refúgio, um lugar onde posso ir quando tudo parece sombrio demais. E nesse breve período de tempo em que eu me sentia a salvo, conseguia absorver alguns valores simples que acabaram sendo cruciais na minha formação e nos momentos em que precisei lutar por superação.
Ela me lembrou muito a também auto-biográfica “Retalhos”, e que mesmo que não sendo dotada da poesia da obra de Craig Thompson, consegue ser tão boa quanto em apenas 14 páginas e com pouquíssimo texto.
Something Terrible está sendo publicada aos poucos (um painel por vez) na web, mas por apenas 99 centavos de dólar você pode comprá-la completa (em .pdf e .cbr) aqui
Sem gracejos, minha nota para ela é 10.
(É eu sei, ando muito sensível)
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